18 novembro 2014

Sementes de Poesia - ed.especial - Ângela Vieira Campos - novembro 2014




Ângela Vieira Campos





Ângela Vieira Campos

Sementes de Poesia - ed.especial - Ângela Vieira Campos - 8/novembro/2014, 18h
Lançamento do livro SENDAS NO SILÊNCIO de Ângela Vieira Campos, participação da flautista Aline Parreiras e microfone aberto ao público para leitura de poemas da autora.
Centro de Cultura Belo Horizonte - Centro de Referência da Moda
Curadoria de Regina Mello



Travessias: entre o sopro e a claridade

                                                                                   Olga Valeska Soares Coelho


“Pegadas vazias vão a lugar nenhum”, afirma o monge vietnamita,
Thich Nhât Hanh. E o que buscam esses poemas que atravessam
espaços dilatados em sendas esculpidas pela cegueira e pela
errância? “Saber de cor o silêncio/e profaná-lo, dissolvê-lo/em
palavras”, parece nos responder a epígrafe de Orides Fontela.
Mas o que dizer se as palavras se calam em versos que tateiam a
insuficiência dos sentidos dos corpos e das linguagens?

Recuso idiomas,
desobedeço dialetos.
Não pressinto a voz dos anjos,
a dos deuses, desconheço,
tenho apreço por silêncios:
o verbo míngua.

“Sendas no Silêncio” registra um percurso de travessia entre duas
cegueiras que ironicamente parecem evocar o espaço aberto de
distâncias e inquietações. O livro se divide em quatro partes:
Cegueira; Corpo do Fogo; Telas; Corpo do Barro. A primeira parte
do livro reúne dez poemas que dão início a essa jornada insólita
de assombros:

Deslizes deslizes deslizes
nesse passo assombrado
entre o solo e o nada
como se pisasse filigranas minúsculas
do livro invisível que nunca cessa
silêncio

E o sujeito poético segue, teimoso, uma senda de deslizes e
desvios. Cada parte do livro evoca experiências e sensações que
afetam um corpo que transmuta do fogo ao barro sem se deixar
fixar em nenhuma forma definitiva. É bastante significativo
que, no segundo poema do livro, a palavra “assombro” se veja
matizada por uma imagem de “sombra” (Insubordinada Sombra)
marcando o (des) lugar de um sujeito poético que ousa buscar
caminhos além dos lugares seguros e das verdades constituídas:
“Volto a poetizar o oculto/O rosto recebe palavras/Desvio-me,
não as escuto”.
O livro é introduzido por duas dedicatórias: “Para Heleno,
essa claridade. Para José Vieira, esse sopro”. Sopro e claridade
definem bem o que o leitor vislumbra no percurso de leitura
de “Sendas no Silêncio”. Nessa obra, o sujeito lírico canta um
percurso de criação poética e parece convidar o “outro” a
acompanhá-lo nesse canto sincopado que abre e fecha o ciclo de
uma intensidade sem tempo:

Música como tessitura:
aguardo um sopro místico,
um desalento –
o nada me subtrai.

Ora, cantar é gerar um sopro sonoro que atravessa o corpo
daquele que canta, afetando outros corpos em uma travessia de
ressonâncias potencialmente infinitas. Nesse trajeto, a voz poética
não se faz apenas passageira de uma viagem, nem viajante: ela
é peregrina. O passageiro visa a um ponto de chegada e faz o
presente perder a espessura. O viajante se deixa magnetizar pelo
encantamento do caminho e se esquece de si mesmo adiando,
sempre, o lugar da chegada. Já um peregrino está em estado de
vigília e fixa o seu olhar no pé que toca o caminho e no caminho
mesmo, sem deixar, no entanto, de se saber também passageiro
e viajante.
“Sendas no Silêncio” sustenta um sopro peregrino que tem
como ponto de partida um corpo amoroso que se abre para
um espaço além do si mesmo: “Tantos versos me sulcam/longe
de ancoradouros.” O canto é, então, um sopro que se deixa
atravessar pelo “outro”, numa perda de si que sugere a imagem
de um beijo:

primeiro a boca
que respira
depois as asas
a tocarem minhas fímbrias secretas
e então o sopro dessa boca sobre a minha
alma

Como afirma Jean-Yves Leloup1: “beijo em hebraico se diz
nashak, e quer dizer respirar juntos, compartilhar o mesmo sopro
e o mesmo odor. Assim, beijar é compartilhar o mesmo sopro”.
Como em o “Cântico dos Cânticos”, o livro de Ângela Vieira
deixa entrever uma pergunta: O que é “bem amar? E a canção
peregrina não oferece qualquer resposta, mas atravessa
espaços desérticos, explicitando uma poética orquestrada por
experiências físicas (?) de um agora pleno de claridades:

O amor traça ranhuras em nossos papéis.
Papiro sem data, o amor
Desfolha os palimpsestos da pele,
Perscruta o mar dos escolhos.
Amor: um fechar de olhos!
O amor só é amor pela claridade.

Também como os “Cânticos”, os poemas parecem aconselhar:
“Escute os sinais, observe as pegadas”. No texto de Vieira, os
corpos são sinais e o ritmo mesmo de uma vitalidade: uma força
capaz de suportar a imensidão circunscrita em imagens que
parecem recusar seus próprios limites.

A lucidez das plêiades
em obscuros cantos de sereias
avisam-me da noite maior,
forjada por vozes de poetas,
em cantos de maldoror.

Na verdade, o que se escuta é o ritmo do mundo que, na
violência de um presente impregnado de presenças, fragmenta
e desmembra os corpos que o povoam. E o gesto de escrever
confunde-se com uma busca pelo divino, na experiência de um
corpo demasiadamente humano, como podemos observar no
poema “Orfeu”:

Seus jardins secretos
Eram assim povoações
De outros corpos
Que lhe atingiam os órgãos
E os desmembravam
Um a um,

No mito, Orfeu encanta o mundo com sua música dionisíaca. Ele
vence os perigos de Hades, mas não vence a própria morte nas mãos
de bacantes. Em “Sendas no Silêncio”, a música de Orfeu entorpece a
dor existencial causada pela experiência da vitalidade bruta. A dor, a
morte e a sede confundem-se em uma entrega (impossível) ao “fora
do eu” que não se personifica em um rosto humano:

Estava tão dilacerado
e não percebeu
tanta era a música sentida
tanta era a sede
bebida
nas taças das bacantes
fora do eu.

O corpo que caminha... o sopro que recita, ressoa além dos limites
desses mesmos corpos que evoca, além da pele. Ele se fragmenta
para um encontro com a claridade absoluta no espaço de um fazer
poético pleno de assombros:

que a nudez se sature das tempestades
de areia
que os olhos se transbordem de ventos
que a pele assovie aos sons de seus arrepios
e o sexo distenda a corda sobre o abismo

A escrita risca o papel em “rastros rápidos”, redesenhando
o mundo e o corpo do peregrino que se deixa transmutar em
passagens que carregam bagagens múltiplas de vidas e de
memórias. Na verdade, os poemas constituem vozes que se
dissolvem em outras vozes, embaralhando os caminhos e
tateando experiências localizadas em corpos que sofrem, amam
e repousam:

Quantos silêncios são necessários
até que os corpos dancem suas perdas
suas paradas, suas doenças?

E o corpo que caminha em “Sendas no Silêncio” atravessa
os poros do mundo, em um percurso que toca “outras vozes”
inscritas na tradição poética ocidental e oriental. Assim, os pés
do caminhante cruzam e encontram trilhas demarcadas por
outros pés em um mise-en-abyme que reduplica infinitamente o
gesto da leitura/escrita/rasura.

porque das mãos viscosas ascendem letras
que me apagam
e da aragem retorna o resto, o riso,
sacro rito de um corpo incendiado

Nesse sentido, cantar é alinhavar ritmos, doar a força que
impulsiona os corpos em seu caminho. O sopro é, assim, a
doação da vida, mas é também o encontro de si em estado de
otredad. O canto é o sopro do corpo que anima a si mesmo e ao
outro, levando-os a uma busca que é também retorno:

Tantos versos me sulcam
longe de ancoradouros.
E quanto a eu ser outro
talvez mar, talvez sopro.

A voz que canta viaja num devir metamórfico que atravessa,
como o vento, os espaços visitados por outros sopros. Como
em uma dança, essa voz faz o som desse “magma” rodopiar
transmutando-o também em vento e vazio. Assim, o sujeito
poético em “Sendas no Silêncio” é sempre o estrangeiro, o
amante e o peregrino. E o seu caminhar é a intercessão das
temporalidades de uma experiência amorosa que tem sua
verdade provada no encontro improvável do vazio, da claridade
e do silêncio.

Espasmo entre cactos e pradarias
um súbito amanhecer
nas brenhas.
Desfez-se em desrazão
inclinando o rosto
como se divisasse os horizontes
e seus silêncios.

1LELOUP, Jean-Yves. Uma arte de amar para os nossos tempos. Petrópolis: Vozes,
2004. p. 43.

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